Garoto prodígio
Nascido em Pernambuco, o jovem Manga teve uma infância bem pobre no Recife e contraiu varíola em seus tempos de criança, doença que deixou o rosto do futuro craque cheio de marcas, fato este que fez nascer o codinome “Manga”, por causa das “crateras do tamanho de mangas”. Apelido e suas origens à parte, o jovem goleiro era uma verdadeira celebridade nas partidas de futebol de rua do Recife por mostrar desde cedo uma coragem incrível ao se atirar de tudo quanto era jeito para agarrar as bolas chutadas pelos atacantes. Em 1954, Manga brilhou nos juvenis do Sport e passou o campeonato inteiro sem levar um gol sequer. Seu talento despertou rapidamente a atenção da diretoria rubro-negra, que levou o garoto ao time principal para partidas esporádicas em 1955 e 1956. Em 1957, Manga virou definitivamente titular na excursão do clube pernambucano à Europa e não saiu mais do gol. Extremamente frio, seguro, ágil e com reflexos apuradíssimos, Manga conquistou a todos no Sport e foi um dos destaques na campanha do título pernambucano de 1958 ao lado de Walter Morel, Traçaia e Pacoti. Em 1959, o célebre botafoguense João Saldanha convidou o goleiro para jogar no clube alvinegro. O pedido, que foi quase que uma ordem, foi prontamente atendido pelo goleirão, que se mudou para o Rio de Janeiro no mesmo ano.
Além de eficiente e cheio de talento, Manga sempre teve a sorte ao seu lado e uma predestinação única em fazer parte de esquadrões históricos e vencedores. O primeiro deles foi o Botafogo, a nova casa do pernambucano a partir de 1959 e que serviu como ponte para Manga se revelar um dos maiores goleiros do Brasil nos anos 60. Ao lado de craques como Nilton Santos, Didi, Zagallo, Quarentinha, Paulo Valentim, Amarildo e Garrincha, Manga fez parte do maior time da história do Botafogo e também de um dos maiores do futebol mundial. A equipe alvinegra foi uma das poucas naquela época a conseguir bater de frente contra o Santos de Pelé, realizando embates históricos e cheios de gols. Isso, claro, se Manga permitisse travessuras da turma da Vila Belmiro. No Rio de Janeiro, o goleiro conquistou logo no começo da década um bicampeonato carioca (1961 e 1962) e dois Torneios Rio-SP (1962 e 1964), sempre garantindo uma baixíssima média de gols sofridos ao Botafogo e mostrando suas qualidades na reposição de bola, nas defesas impossíveis e, principalmente, com seu sangue frio em momentos decisivos.
Foi justamente no primeiro bicampeonato carioca vencido por Manga (o outro seria em 1967 e 1968) que ele eternizou suas frases a respeito do Flamengo, adversário que ele mais gostava de enfrentar, vencer e deixar as redes de seu gol intactas. Em 1961, o Botafogo derrotou o time da Gávea por 3 a 0 (dois gols de Amarildo e um de China) e, em 1962, repetiu o placar, dessa vez com dois gols de Garrincha e um de Vanderlei (contra). Como na época se pagavam “bichos” para os jogadores em caso de vitórias em determinadas partidas (em especial os clássicos), Manga dizia que “o leite das crianças está garantido” antes das partidas contra os rubro-negros para a alegria da torcida alvinegra.
Além dos títulos nacionais e estaduais, Manga conquistou vários troféus internacionais pelo Botafogo nas muitas excursões que o time de General Severiano fez pelo mundo, o que só fez aumentar o prestígio e fama do goleiro por onde ele passava. Tanta vontade de vencer e o apetite para sair do gol em busca da bola custaram vários dedos quebrados na época e a dificuldade em fechar as mãos com o passar dos anos, muito pelo fato de Manga não utilizar luvas. Ao contrário de muitos, o goleiro não ligava e jogava mesmo assim, como ele mesmo afirmou em entrevista ao site do diário Lance!, em abril de 2013:
“Eu não tinha medo, era corajoso. Quando eu quebrava um dedo, o doutor me engessava e em três ou quatro dias eu já estava jogando de novo. Por isso, eu tenho quase todos os dedos tortos. Essas são as marcas do meu trabalho. Tenho um orgulho muito grande do que fiz na minha carreira. Sempre fiz o melhor, mesmo que estivesse machucado.” – Manga, em entrevista ao site do diário Lance!, abril de 2013.
As atuações de Manga com a camisa do Botafogo o levaram automaticamente à seleção brasileira a partir de 1965. Mesmo com a titularidade absoluta de um já veterano Gilmar, Manga fez algumas partidas com a camisa verde e amarela e deu conta do recado, conseguindo uma vaga entre os convocados para a disputa da Copa do Mundo de 1966, na Inglaterra. O Brasil não tinha nem de longe a força dos timaços campeões das Copas de 1958 e 1962, mas foi para o mundial cheio de confiança e num ambiente repleto de bagunça. Depois de vencer a Bulgária por 2 a 0 e perder para a Hungria por 3 a 1, a equipe precisava de uma vitória a qualquer custo contra a fabulosa seleção de Portugal, de Eusébio e Coluna, para seguir viva na competição. E foi no jogo mais importante para o Brasil naquela Copa que Manga teve a grande chance de mostrar serviço ao ser escalado como titular no lugar de Gilmar, machucado. No entanto, o que era para ser um show do goleirão frio e cheio de talento virou o maior pesadelo da carreira do pernambucano.
Muito nervoso com o peso de sua estreia em uma Copa, o goleiro não foi nem sombra do titã que os brasileiros estavam acostumados a ver. Logo no começo do jogo, Manga cortou um cruzamento como quem corta uma bola no vôlei e mandou a redonda na cabeça do português Simões, que abriu o placar para a equipe europeia. Minutos depois, novo cruzamento, Manga não se moveu e Eusébio ampliou: 2 a 0. O jogo seguiu terrível para o Brasil, Pelé deixou o gramado machucado e Portugal venceu por 3 a 1. Aquela seria a primeira e única partida de Manga em uma Copa do Mundo, que reconheceu estar em um dia infeliz naquele 19 de julho de 1966:
“[…] Os nervos nos prejudicaram. Eu também não vou negar que acabei sendo influenciado negativamente”. – Manga, em entrevista publicada no Jornal da Tarde, outubro de 2003.O fato é que Manga nasceu para brilhar por clubes, não pela seleção. Em 16 jogos (13 oficiais) com a amarelinha, o goleiro sofreu 16 gols.
Após a Copa, Manga foi duramente criticado pela imprensa brasileira e viveu anos complicados no Botafogo. Mesmo com mais títulos conquistados (incluindo uma Taça Brasil, em 1968), o goleiro perdeu seu prestígio principalmente após uma partida contra o Bangu, em 1967, quando João Saldanha, o mesmo que levou o goleiro ao Botafogo lá no final dos anos 50, disse que Manga havia sido comprado pelos diretores do Bangu para entregar o jogo. Revoltado, o goleiro resolveu se acertar com Saldanha “no braço” e marcou um encontro nada amistoso com o então comentarista na sede do Botafogo. Na hora do “vamos ver”, Manga foi cheio de fúria e convicto de que daria uma inesquecível surra no inimigo falastrão. Como Saldanha não se garantia no braço – e como Manga tinha quase 1,90m e bem mais força – o comentarista foi armado para o encontro e sacou o revólver quando viu o goleirão, dando tiros em direção ao chão. Manga teve que fugir pulando o mais alto que podia o muro do clube. A briga foi o estopim para que Manga deixasse o Botafogo, em 1968, e aceitasse um convite do técnico Zezé Moreira para jogar no Nacional, do Uruguai. Em terras diferentes e calmas, o goleiro teria tudo o que precisava a fim de retomar sua carreira.
Manga chegou a Montevidéu com a missão de colocar o Nacional de volta ao caminho dos títulos e acabar com a longa hegemonia do rival Peñarol, que vinha de títulos marcantes nos anos 60 – incluindo dois Mundiais e três Libertadores. Depois de ver inúmeros goleiros passarem pelas metas tricolores, os torcedores do clube viram em Manga a figura que tanto o time precisava e que tanto eles sonhavam em vibrar e torcer. O apoio dos uruguaios e um ambiente mais calmo e profissional fizeram Manga crescer muito como atleta e a ter mais respeito próprio, deixando para trás as brincadeiras que costumava fazer nos tempos de Botafogo. Em 1969, Manga levantou o primeiro de seus quatro títulos uruguaios consecutivos (1969, 1970, 1971 e 1972) pelo Nacional de maneira invicta, com 16 vitórias e quatro empates em 20 jogos. O goleiro sofreu apenas oito gols na competição e conquistou logo em sua primeira temporada a simpatia de todos, menos dos rivais, que temiam a cara de mal e a imponência do brasileiro na meta tricolor. O caneco foi só o começo de anos maravilhosos do goleiro em solo uruguaio. Em 1971, Manga foi uma das estrelas dos históricos títulos da Copa Libertadores (quando Manga sofreu apenas um gol nos três jogos da final contra o Estudiantes) e do Mundial Interclubes, vencido após empate em 1 a 1 e vitória por 2 a 1 sobre os gregos do Panathinaikos.
As atuações do goleiro ao lado de craques como Ancheta, Masnik, Ubiña, Luis Cubilla, Víctor Espárrago, Luis Artime e Julio César Morales transformaram o brasileiro em uma lenda no Uruguai e no “El Fenómeno”, apelido pelo qual Manga também passou a atender por lá. Titular absoluto e incapaz de dar uma trégua para qualquer goleiro uruguaio ter uma chance na meta tricolor, Manga dominou o gol do Nacional naqueles anos e viveu, talvez, sua melhor fase na carreira, com muita dedicação, seriedade, defesas impressionantes e uma maturidade exemplar, além de ter o imenso prazer de calar estádios adversários por diversas vezes com suas atuações de gala.
Em 1974, com o Nacional já sem suas grandes estrelas e esperando por novos tempos de ouro (que só chegariam em 1980), Manga era a estrela única do time quando protagonizou um lance que só reforçou sua popularidade em Montevidéu. Em um jogo contra o Racing y Calcaterra, Manga deu um chutão para frente bem despretensioso e voltou para o seu gol. A bola chutada pelo brasileiro foi indo, indo até chegar à área do goleiro rival, passar pela cabeça do arqueiro e entrar mansamente no gol: gol de goleiro! Gol de Manga!
Depois de anos maravilhosos no Nacional, Manga deixou o Uruguai para voltar ao Brasil e vestir o manto vermelho do Internacional. A chegada do goleiro foi bem diferente de sua saída, lá em 1969, afinal, Manga vinha de façanhas impagáveis no clube de Montevidéu e com títulos que centenas de craques do país jamais conseguiram ter (Libertadores e Mundial). Outra vez, o goleiro chegou a um clube que tinha grandes jogadores e vivia uma ótima fase, com a conquista de cinco títulos estaduais consecutivos e nomes como Falcão, Figueroa, Carpegiani, Valdomiro e Flávio. Como todo grande time começa com um grande goleiro, Manga transformou o Colorado no maior time do Brasil entre 1975 e 1976.
Em 1975, o Internacional faturou seu primeiro título brasileiro depois de despachar grandes times ao longo de sua campanha, inclusive o Fluminense de Rivellino, que perdeu em pleno Maracanã por 2 a 0 (por que será que o Inter não levou gols, não é?). Na decisão, o Internacional decidiu em sua casa o título contra o Cruzeiro de Nelinho, Raul Plassmann, Piazza, Zé Carlos, Palhinha e Joãozinho. Em um jogo tão pegado, quem brilhou foi a zaga colorada e o goleiro Manga, que pegou tudo naquele jogo e fez a maior defesa de sua carreira segundo ele próprio, após Nelinho cobrar uma falta frontal, a bola sair da barreira, fazer uma curva incrível e Manga se virar todo para espalmar a bola de maneira impecável e inesquecível. Com um gol “iluminado” do zagueiro Figueroa, de cabeça, o Inter, pela primeira vez em sua história, era campeão nacional. Na campanha do título, o Colorado levou apenas 12 gols em 30 jogos. Culpa de Manga…
Em 1976, a equipe repetiu o feito e faturou o bicampeonato, com Manga sendo outra vez fundamental para o título ao não levar gols na final contra o Corinthians (o Inter venceu por 2 a 0) e garantir mais uma vez o impressionante e baixo número de gols sofridos pelo clube vermelho: 13 em 23 jogos.
Depois de se desentender com a direção do Colorado, em 1977, Manga deixou o Internacional e se mandou para o Mato Grosso do Sul, onde foi jogar no Operário, dirigido na época por outra lenda que também brilhou no gol: Castilho. Com um ótimo goleiro no gol e um ótimo ex-goleiro no banco, o time alvinegro conquistou o campeonato estadual de 1977 e fez uma campanha surpreendente no Campeonato Brasileiro do mesmo ano, quando alcançou as semifinais da competição até perder para o futuro campeão, o São Paulo. Manga foi fundamental para a enorme façanha do pequeno time do centro-oeste do Brasil no torneio, que venceu 10, empatou seis e perdeu apenas quatro dos 20 jogos disputados, com 28 gols marcados e 16 sofridos.
Em 1978, Manga foi jogar no Coritiba e também foi campeão, dessa vez do Campeonato Paranaense, mas não antes de protagonizar uma de suas histórias. Antes da decisão do torneio estadual daquele ano, o goleiro conversou com o diretor do clube alviverde para cobrar uma dívida que o clube lhe devia desde a sua contratação. “(Estevão) Damiani, o Manguinha está com um problema. E Manguinha com problema em partida decisiva tem medo de jogar mal e comprometer o time.” Rapidamente, o diretor tirou o talão de cheques do bolso e ia preencher a quantia devida quando foi interrompido pelo goleiro. “Cheque não. Cheque é problema. Manguinha tem de ir ao banco, às vezes assinatura não confere… Manguinha prefere os 100 mil em dinheirinho mesmo”. Tempo depois, o goleiro recebeu, em dinheiro, o valor que o Coritiba lhe devia. Na final, o Coxa foi campeão e Manga fechou o gol, defendendo até pênalti…
Citações extraídas da Manchete Esportiva, 23 de janeiro de 1979, e reproduzidas no livro “Goleiros”, de Paulo Guilherme.
Em 1979, Manga teve a audácia de ir para o Grêmio e conseguir o
respeito e admiração da torcida tricolor mesmo tendo defendido o maior
rival do clube – o Inter. Desdenhando do Colorado logo em sua
apresentação no Grêmio dizendo que “o Inter iria pagar caro e não faria
mais gols no tricolor”, Manga conquistou o título estadual de 1979 e
manteve sua incrível sina de conquistar taças por onde passava. No
começo dos anos 80, já acima dos 40 anos, Manga se despediu do futebol
jogando pelo Barcelona de Guayaquil (EQU), onde também foi campeão
nacional.Depois de se aposentar aos 45 anos e ser um dos maiores exemplos de longevidade da história do futebol, Manga passou um tempo descansando suas tão combalidas mãos (que ficaram totalmente deformadas) e virou treinador de goleiros do Barcelona de Guayaquil, tendo contribuído para o surgimento de goleiros como Carlos Morales, Espinoza e o mais famoso deles: Cevallos, ídolo da LDU e herói da conquista da equipe na Libertadores de 2008. Foram quase 30 anos de carreira no exterior até que Manga retornasse ao Brasil, em 2010, para trabalhar no Internacional como embaixador e treinador de goleiros. Em 2012, ainda com um nítido sotaque castelhano, Manga retornou ao Equador por causa da saudade da família e por lá vive até hoje.
Nos anos 70, o tenente Raul Carlesso e o capitão Reginaldo Pontes Bielinski decidiram criar um dia para homenagear os goleiros do Brasil e optaram pelo dia 14 de abril, comemorado pela primeira vez em 1975. Um ano depois, porém, a data mudou para o dia 26 de abril, aniversário de Manga, que ganhou a homenagem graças à sua longevidade (tinha 39 anos na época), talento (era como vinho, quanto mais velho ficava, melhor jogava) e títulos conquistados (faturou naquele ano o bicampeonato brasileiro com o Inter). Até hoje, o Dia do Goleiro é celebrado no país e reverencia todos aqueles que impedem justamente o grande momento do futebol: o gol. E se teve uma pessoa que calou estádios, fez-se ouvir diversos “uuuh” e se impôs como um legítimo guardião dos três postes foi Manga, o goleiro multicampeão por onde passou, o maior goleiro da história do Botafogo, do Nacional, do Internacional e um dos maiores do mundo em todos os tempos. Um craque imortal.
Números de destaque:
Disputou 442 jogos pelo Botafogo e sofreu 394 gols.
Disputou 220 jogos pelo Internacional e sofreu apenas 120 gols.
É um dos brasileiros recordistas em jogos disputados na Copa Libertadores da América: 73 partidas (34 vitórias, 20 empates, 19 derrotas e 69 gols sofridos).
Fonte Site: Tardes no Pacaembu.